RESUMO
O objetivo deste artigo é abordar alguns importantes conceitos da teoria winnicottiana, dando início a uma reflexão sobre sua aplicabilidade na clínica com grupos, famílias, casais e instituições. Trata-se, mais do que tudo, de uma tentativa de estimular os psicanalistas das configurações vinculares a buscarem conhecer com profundidade as ricas contribuições deste autor.
Os temas tratados neste artigo são: área de ilusão, capacidade de estar só, criatividade e espontaneidade, falso e verdadeiro self.
ABSTRACT
The author offers references of some aspects with which Winnicott deals along his forty years of scientific work, trying to show the importance of certain winnicottian concepts such as the capacity of being alone, creativity and spontaneity and true and false self to the comprehension of specific situation that occurs in multipersonal psychoanalytical therapies.
1. Winnicott: um mestre, um modelo
Winnicott foi um psicanalista sui generis. Disse Masud Khan, seu admirador, analisando e discípulo: “Não conheci nenhum outro analista mais inevitavelmente ele mesmo. Foi esta qualidade de ser inviolavelmente “eu-mesmo” que lhe permitiu ser tantas pessoas diferentes para criaturas tão diversas. Cada um de nós que o conheceu tem seu próprio Winnicott e ele jamais desrespeitou a versão que o outro tinha dele, afirmando seu próprio estilo de ser. E, contudo, permaneceu sempre e inexoravelmente Winnicott.” (Winnicott, 1988, pág. 7)
São inúmeras as contribuições de Winnicott à psicanálise, a começar por esta sua característica tão bem colocada por Khan. Considero-o, portanto, antes de tudo, um modelo. Nunca gostou de que os discípulos o imitassem. Sempre foi muito pouco ortodoxo na técnica, o que lhe custou muitas críticas por parte dos psicanalistas seus contemporâneos. Um dos seus méritos foi nunca ter-se deixado abater por isto. Seguiu, ao longo de quarenta anos &– da década de 30 até 1971, quando faleceu – escrevendo o que pensava, discutindo construtivamente, a partir de suas idéias, com os teóricos que o rodeavam, e sem ter como meta impor-se sobre o pensamento vigente. Isto porque não era favorável a que as escolas de pensamento fossem confundidas com seitas. Nunca omitiu sua opinião, pois sempre foi a favor de que se expressasse o verdadeiro. Outra virtude sua, na minha opinião, foi jamais ter-se desligado das sociedades que criticou, procurando desenvolver o diálogo dentro das mesmas.
Tendo-se em conta, portanto, Winnicott como pessoa, o que fazia e o que cultivava nas relações interpessoais e na vida acadêmica, sempre coerente às suas postulações teóricas, concluímos que aprender Winnicott não deve ser pretender fazer como ele e sim, procurar identificar aspectos teóricos por ele formulados que possam nos ajudar a compreender nossos pacientes e orientar nossa maneira de acolhê-los, seja no atendimento individual, ou quando lidamos com grupos, famílias, casais ou instituições.
Foram muitos os temas abordados por Winnicott ao longo dos seus quarenta anos de produção teórica. Destes, selecionei alguns a serem abordados neste artigo: conceitos cujo conhecimento e compreensão muito vêem me ajudando nas diversas atividades que venho desenvolvendo como psicanalista de configurações vinculares.
2. Alguns temas tratados por Winnicott
a. A capacidade de estar só
Em 1958, Winnicott escreveu um artigo em que expõe sua constatação de que a capacidade de estar só é um dos sinais mais importantes de amadurecimento emocional. Não se refere, absolutamente, a um confinamento solitário; trata-se, isto sim, de um fenômeno altamente sofisticado ao qual uma pessoa pode chegar depois de atingir o estágio triádico.
Explicando melhor: Winnicott supõe que anteriormente à relação diádica, que envolve o bebê e a mãe (ou substituta), que é seguida pela relação triádica, quando surge um pai diferenciado, haveria um estágio unipessoal, individual. Sua proposta difere do que conhecemos de Freud sobre o narcisismo ou o auto-erotismo, pois o que sugere é que a possibilidade de ficar só em estado tranqüilo, condição a que ele chama de “solidão sofisticada”, depende de uma experiência, enquanto lactante, de ter ficado só, na presença da mãe.
O que é, portanto, básico, na colocação winnicottiana, é a afirmação de que a capacidade de estar só de um sujeito, depende de um outro sujeito, que permitiu-lhe permanecer só, na sua presença. Trata-se, assim, de uma relação entre duas pessoas em que a presença de uma delas é importante para a outra, mas uma delas, ou mesmo as duas, estão sós, sem conexão, mas ligadas.
Uma outra forma de dizê-lo é: há uma solidão compartilhada, sem tensão no id. É aquilo que, às vezes, caracteriza o pós-coito.
Não é verdade que Winnicott atribua integralmente o alcance desta possibilidade à mãe. Ele também leva em consideração o potencial do bebê para tal aquisição. Segundo seu ponto de vista, a criança sadia pode perceber ou imaginar uma relação excitante entre seus pais e suportar estar excluída. Ela o faz, aproveitando a raiva gerada pela exclusão, para a masturbação.
Estabelecendo uma rápida comparação entre Winnicott e Melanie Klein, podemos dizer o seguinte: para Klein, o que possibilitaria a um bebê suportar-se excluído da relação de seus pais seria a presença de um bom objeto introjetado. Gratificações instintivas repetidas permitiriam esta construção. A formulação de Winnicott tem alguma semelhança com isto mas possui um adendo essencial. Sua hipótese é de que o fato de haver alguém perto do bebê, disponível, sem fazer exigências, e não porque o bebê precise de algo, isto permite o estabelecimento de um meio interno favorável. É interessante observar que esta possibilidade de viver a solidão sofisticada na presença da mãe, exige que esta mãe tolere a exclusão, e este é um ponto chave da questão aqui abordada. Fundamental é, também, que tal meio interno é uma situação anterior e mais primitiva do que uma mãe introjetada.
Winnicott fala, assim, da importância da presença da mãe em momentos de repouso do id. Por isto ele chama este fenômeno de relação com o ego. Afirma que, neste contexto, quando surge um impulso, este pode ser sentido como próprio, verdadeiro.
A aplicabilidade de tal hipótese no nosso trabalho, enquanto analistas, vejo-a, por exemplo, na questão dos momentos de silêncio que possam surgir durante sessões. É muito importante, no processo analítico, o terapeuta poder respeitar certos silêncios. Estar preparado para não viver o silêncio do paciente como um abandono. O silêncio pode ser expressivo de uma grande conquista: a conquista da capacidade de estar só, na presença do analista. Não podemos pensar no silêncio sempre como uma resistência, mas também como momentos de um contato profundo consigo mesmo, ou mesmo de experimentar o prazer de um id em repouso, na presença de alguém. Num grupo, por exemplo, poderão surgir intolerâncias a uma participação silenciosa por parte de algum integrante. Isto poderá dar-se pela dificuldade de tolerar a “solidão sofisticada” do outro, solidão que exporá o “reclamante” a uma experiência de exclusão intolerável para ele pelas suas próprias dificuldades. O analista que tiver em mente a hipótese winnicottiana a respeito da capacidade de estar só, terá condições de dar um encaminhamento muito interessante a tal situação. Também em terapias de casal e de família, este tema é de extraordinária riqueza.
b. Criatividade primária e área de ilusão
Winnicott sempre se preocupou em entender o vínculo precoce mãe – bebê.
Um aspecto muito original de seu pensamento é a hipótese de que nesta identificação simbiótica profunda entre a mãe e o bebê cria-se uma área de ilusão na qual o bebê acredita que o seio da mãe é uma idéia sua e assim prolonga por mais algum tempo sua onipotência narcísica.
Neste momento não há discriminação entre interno e externo. Há uma indiscriminação.
Há também uma não integração e o bebê precisa primeiro encontrar uma unidade para depois poder discriminar o que vem de onde.
Winnicott acha precoce falar em impulsos e fantasias antes dos seis meses. Segundo ele, a criança ainda precisa organizar-se e para isto ela precisa da mãe.
Considera que a própria localização do self no corpo é produto de uma elaboração ao longo do tempo. Não acha que isto seja inato e é a este processo que Winnicott chama de integração. O bebê conta com uma aparelhagem que permite que essa integração seja alcançada. A esta aparelhagem, ou, em outras palavras, o potencial para atingir a condição de integração e a conseqüente possibilidade de localizar o self no próprio corpo, Winnicott chama de criatividade primária.
A tensão de necessidade é um precursor de um impulso instintivo. Na sua concepção, o bebê tem uma tensão de necessidade, uma falta. A fome poderia ser um exemplo disto. Ele cria então, na sua imaginação, um objeto que pode preencher esta falta. O seio seria um exemplo disto. Se este objeto imaginado, possível porque existe a criatividade primária, lhe for apresentado concretamente neste exato momento em que está criado na sua imaginação – o que só pode ocorrer quando há uma mãe atenta, fica ali criada uma área de ilusão, onde o bebê vive a presença daquele objeto como o resultado de sua criatividade e assim ele conserva um narcisismo onipotente que não tem compromisso com a realidade externa.
Para Winnicott, esta capacidade criativa ingênua, preenchida dessa crença de que criamos tudo de que precisamos, vai sendo modelada pela realidade material, mas várias manifestações adultas normais são herdeiras desta área de ilusão: a criatividade artística, a capacidade de estar só, o uso de objetos transicionais, o brincar e o devanear saudáveis.
Este conceito de área de ilusão pode nos ser muito útil na experiência como analistas, particularmente nos primórdios de uma análise. É de se imaginar que o que conduz o paciente à situação analítica (seja este um indivíduo ou uma configuração vincular) é uma falta. Está, portanto, presente uma tensão de necessidade, na terminologia winnicottiana. É de se supor, portanto, que esteja criado na imaginação deste paciente um objeto que possa preencher esta falta. Ao analista atento, como à mãe suficientemente boa, compete, então, ser capaz de oferecer àquele que o procura o equivalente ao objeto da fantasia do outro (ou outros, quando são famílias, casais ou outras modalidades de grupos). Obviamente, isto muitas vezes não é possível, seja porque não somos capazes de criar, no plano material, tal objeto, seja porque não chegamos a apreender do que se trata. Creio, porém, que se temos em mente a hipótese winnicottiana de área de ilusão e sua importância enquanto base da manutenção de um potencial criativo saudável, isto determina uma forma de conduzir as sessões que pode favorecer este aspecto vital. Por outro lado, a ignorância de tais formulações poderá nos levar a tender a interpretar algumas formas de expressar o desejo de encontrar o objeto imaginado como manipulação, intolerância à frustração, etc. Deste tipo de interpretação poderá resultar a supressão da criatividade primária com um prejuízo importante na condição dos nossos pacientes de organizarem internamente e operacionalizarem bons projetos de vida.
O conceito de área de ilusão exige dos analistas não apenas aceitar a expectativa dos pacientes de encontrar, na situação analítica, o objeto ideal, mas também a tolerância a que o paciente (indivíduo, ou qualquer modalidade de grupo) acredite que tal objeto foi criação sua, e não produto de investimento do analista. Isto é fundamental, até que chegue o momento em que se torne possível discriminar o que vem de onde.
Assim como o bebê, uma vez que o processo analítico favorece uma regressão, nossos pacientes precisam acreditar que podem criar com a imaginação tudo de que precisam, até atingirem a possibilidade de dispensar tal fantasia onipotente.
Nas abordagens multipessoais, podemos nos confrontar com situações em que, no grupo, os vários integrantes, em diferentes estágios de maturidade emocional, exprimam os fenômenos relacionados às questões acima referidas (tensão de necessidade, área de ilusão) de forma muito complexa, em função da rede vincular que se estabelece, exigindo do analista muita habilidade e delicadeza. Num casal, por exemplo, podemos incluir a hipótese winnicottiana da área de ilusão na compreensão do seguinte texto:
“Os casais sentem, sem querer, nem poder evitar, que tendem a colocar o outro na posição de objeto ilusório… enquanto o outro, inevitavelmente diferente não se superpõe totalmente àquele lugar de ilusão, vivido como intruso perde o encanto que sabia ter. Esta produção vincular deriva de um funcionamento primitivo…” (Puget, 1992, pág.188).
c. Falso e verdadeiro self
Assim, no primeiro estágio do desenvolvimento do bebê a figura materna é de importância primordial. A presença de uma mãe atenta na vida do bebê cria um ambiente suficientemente bom que permite ao bebê alcançar, conforme as necessidades do momento que está vivendo, as satisfações apropriadas e também vivenciar sem temor de desintegrar-se, as angústias, ansiedades e conflitos.
O ambiente não suficientemente bom distorce o desenvolvimento. O mesmo pode ser dito dos primeiros estágios de uma análise, estabelecendo-se uma analogia entre o analista e a mãe.
Várias são as possibilidades de um desenvolvimento distorcido. Selecionei, neste artigo, abordar a questão do que Winnicott denomina de falso-self.
Trata-se de um conceito que tenho observado com uma certa freqüência, ser mal utilizado. Meu objetivo, neste momento, é procurar transmiti-lo, da forma como me foi possível compreendê-lo, acrescido de alguma reflexão sobre sua utilidade, na prática clínica.
No início da vida, o bebê passa a maior parte do tempo não integrado: a coesão dos vários elementos sensório-motores resulta de ações da mãe como: envolver o lactante, às vezes concretamente (“handling”), às vezes simbolicamente (parte do “holding”). De vez em quando, de um impulso, surge um gesto espontâneo, que é um potencial do self verdadeiro. A fonte do gesto espontâneo é, portanto, o self verdadeiro, que “provém da vitalidade dos tecidos corporais e de atuação das funções do corpo, incluindo a ação do coração e a respiração” (Winnicott,1979, pág. 136), sendo, no entanto um pouco mais do que o mero viver sensório-motor, pois já inclui uma noção tênue de limites do próprio corpo.
O self verdadeiro só se torna uma realidade viva se a mãe responder adequadamente ao gesto espontâneo.
O que quer dizer isto?
Se o bebê está na fase em que precisa ter sua onipotência alimentada, a mãe lhe disponibiliza os objetos de tal forma a criar a área de ilusão.
Quando a mãe, ao lidar com o bebê, substitui o gesto espontâneo do bebê pelo seu próprio gesto, este se submete, e este é o estágio inicial do falso-self.
A mãe suficientemente boa não pode colidir com a onipotência do lactante. É ele que vai, no momento certo, atingir a possibilidade de renunciar à onipotência.
O self verdadeiro tem espontaneidade. Depois de gozar suficientemente a ilusão onipotente é que ele pode, gradativamente, reconhecer o momento ilusório e aí brincar e imaginar.
Isto é a base do símbolo que, de início é, ao mesmo tempo, espontaneidade e alucinação, e também o objeto criado e finalmente catexizado.
Quando a adaptação da mãe não é suficientemente boa, no início da vida, os objetos externos não são catexizados.
O que Winnicott considera como um objeto catexizado é um objeto que surgiu primeiramente na vida do bebê na área de ilusão, ou seja, como criação onipotente, e que depois passou a ser admitido como algo do mundo externo, no momento em que este bebê pôde desistir da onipotência naturalmente.
Um mundo material povoado de objetos não catexizados tem como conseqüência para o sujeito uma existência falsa. Surge uma irritabilidade generalizada, que pode ser entendida como um sinal de protesto a uma existência falsa.
Assim, a predominância do self verdadeiro, que tem origem na vitalidade dos tecidos corporais e nas funções vitais, vai-se tornando complexo e começa gradativamente a estabelecer contato com a realidade, sempre através da mediação da mãe (ou substituta), de quem se espera o handling, o holding, que inclui o favorecimento das áreas de ilusão. Neste contato com a realidade, segundo Winnicott, restos de fantasia onipotente perduram por muitos anos. A idéia de que as coisas possam ocorrer sem ser por uma ação ou desejo do próprio self demora anos para ser atingida.
O que Winnicott chama de falso-self normal é a adaptação do ego ao ambiente. Seria o equivalente a uma submissão saudável ao princípio de realidade, na terminologia freudiana. Da mesma forma, diz Winnicott, o self verdadeiro, num viver normal, tem que ter um certo grau de submissão. Só que esta adaptação só pode ser bem sucedida se tiver havido um período suficiente durante o qual o ambiente se adaptou às necessidades do bebê.
O falso-self não é, portanto, em si, um problema. Ele protege o verdadeiro self do aniquilamento quando há qualquer interrupção deste curso natural. O problema existe quando existe o splitting muito grande entre o self verdadeiro e o falso-self e o falso oculta o verdadeiro, impedindo a criatividade e a espontaneidade.
Cito o próprio Winnicott para salientar os riscos da desatenção a este fenômeno no processo analítico:
Um paciente que teve muita análise inútil na base de um falso-self, cooperando vigorosamente com um analista que pensava ser aquele o seu self integral, me disse: ‘a única vez que senti esperança foi quando você me disse não ver esperança’, e continuou com a análise.” (Winnicott, 1979, pág.139).
Num grupo, a abertura de caminhos para a comunicação com o self verdadeiro, pode ser muito facilitada se o analista souber aproveitar a sensibilidade dos participantes do grupo, que podem captar e denunciar a espontaneidade e a criatividade aprisionadas de seus companheiros. Devemos nos lembrar também de que a constância de um humor irritado pode ser a expressão de um falso self hipertrofiado, massacrando a possibilidade de uma expressão criativa; de um sujeito pedindo socorro para poder viver.
3. Conclusão:
Neste artigo, abordo uma fração muito pequena das contribuições de Winnicott. Espero, porém, ter sido capaz de transmitir que a riqueza de suas contribuições e a possibilidade que criam de construirmos hipóteses férteis, que podem modificar nossa forma de acolher as comunicações daqueles que nos procuram, precisando de ajuda, fazem valer à pena mergulhar mais profundamente em sua obra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Puget, J. e Berenstein, I. (1988) – Psicoanalisis de la pareja matrimonial. Paidós, Bs. As., 1992.
Winnicott. D.W. (1978) – Textos Selecionados da Pediatria à Psicanálise. Livraria Francisco Alves Ed. S. A . Rio de Janeiro, RJ. 1988.
Winnicott, D.W. (1979) – O ambiente e os processos de maturação. Ed Artes Médicas Sul, Ltda, Porto Alegre, RS, 1979.