É , volta do mundo, camará. É, mundo dá volta camará.
Retomando na memória um pouco da nossa história nos últimos séculos, vieram-me à mente as cartas de Pero Vaz de Caminha, descrevendo, para os que ficaram no Velho Continente, as Terras de Vera Cruz, depois chamadas Brasil. Fiquei imaginando: quanto tempo, até chegarem estas cartas a Portugal; quanto empenho do relator, para descrever; quanto trabalho imaginativo do leitor, para configurar dentro de si uma imagem do que haviam encontrado os desbravadores. Era preciso sonhar, para ter acesso, em fantasia, ao Novo Mundo.
Lembrei-me, em seguida, de depoimentos de imigrantes europeus do início do século, que, ao virem para as Américas, acreditavam num verdadeiro Paraíso terrestre. Alguns nem sequer sabiam que havia duas Américas. Iam em busca do desconhecido real, preenchidos de um cenário criado em sua imaginação. Seu sonho, produto do desejo de uma vida melhor, lhes permitia abandonar o que lhes era familiar, e partir rumo ao Novo Mundo.
Diferentemente do que ocorria então, hoje, aquilo que se passa em “outros mundos” faz-se simultâneamente presente como imagem, som, relato. A cena outrora apenas possível em fantasia, apresenta-se diante dos sentidos. Não se faz necessário sonhar, imaginar. Essa presença concreta da informação até nos rouba a liberdade de fazê-lo. O espaço reservado para o sonho, tende a ser violentamente invadido. O espírito desbravador dos navegadores, hoje produz demoradas navegações pela Internet. O aprender com a experiência passou a ser, muitas vezes, sinônimo de saber manejar um aparelho eletrônico. A ansiedade, a frustração e a realização são mais freqüentemente vivenciadas em relação ao desempenho da máquina, do que em experiências intersubjetivas. A noção de estar próximo ou distante das pessoas com quem estabelecemos contato é prejudicada pelos avançadíssimos recursos de telecomunicação. Neste Universo sem fronteiras, novos parâmetros se fazem necessários para nos situarmos no espaço.
Como diz Gilberto Gil, antes mundo era pequeno, porque Terra era grande. Hoje mundo é muito grande, porque Terra é pequena, do tamanho da antena parabólica. Antes, longe era distante. Perto, só quando dava. Quando muito ali defronte. E o horizonte acabava.
Pensemos, agora, nas fronteiras impostas pela passagem do tempo. Concretamente, não podemos tornar o passado e o futuro presentes. Essa possibilidade sempre nos foi dada, sim, pelas manifestações do nosso inconsciente atemporal. Atualmente, no entanto, a moderníssima tecnologia nos fornece recursos fantásticos de registro que nos permitem acessar o passado, no presente, e, o que é mais recente, visualizar antecipadamente o futuro. Nos é dispensável, em grande parte, exercitar nossa imaginação, utilizar nossa memória. Somos poupados, em função de tudo isto, de muitas das frustrações a que nossas limitações humanas nos expunham, e privados, talvez de sonhar ….de jangada leva uma eternide, de saveiro leva uma encarnação. De avião , o tempo de uma saudade. Pela onda luminosa, leva o tempo de um raio; tempo que levava Rosa, pra arrumar o balaio.
Os aparelhos eletrônicos e a presença ininterrupta da mídia incorporados em nosso cotidiano, quase como próteses implantadas ao nosso próprio corpo, nos dificultam discriminar nossa dimensão real. A onipotência, sonho do homem primitivo, fantasia da mente arcaica, anseio permanentemente presente na mente humana, parece encontrar muito respaldo neste momento histórico.
O Homem, no início, só sabia usufruir o que lhe era dado pela Natureza. Pouco a pouco, inventou ferramentas para facilitar sua vida. E descobriu como fazer fogo, e inventou a agricultura, e foi, ao longo das eras, aprimorando seus conhecimentos de mecânica, o que lhe possibilitou inventar muitas máquinas, que aumentaram sua velocidade de deslocamento e sua capacidade de produção nas mais diversas áreas. O conhecimento das ciências exatas foi avançando rapidamente, e as conquistas tecnológicas, na mesma proporção. A eletricidade, o telégrafo, a imprensa. Os combustíveis mais possantes, a conquista do espaço sideral. O Homem foi ampliando seus recursos. Finalmente, nas últimas décadas, a informática, a fibra ótica e, com tudo isto, a instantaneidade na transmissão de sons e imagens.
O Homem primitivo, diante do inexplicável, acreditava em forças sobrenaturais. Quando, no século XVII, Anhangüera pôs fogo num líquido translúcido, diante dos olhos dos indígenas brasileiros, estes, acreditando que aquele álcool fosse água, supuseram que aquele homem branco fosse dotado de poderes divinos. E o Homem moderno, como se sente diante de fenômenos que o surpreendem? Como nos sentimos, os homens comuns, diante das realizações que nos parecem sobre-humanas, embora saibamos que não o são? Talvez perplexidade seja uma boa palavra para expressar o que sentimos. Mesmo que não nos assombremos com as conquistas, em si, por sabermos que obedecem a uma ordenação lógica, a perplexidade se justifica diante da capacidade, que parece infinita, do ser humano, de descobrir e inventar e conquistar recursos que lhe possibilitam interferir cada vez mais na Natureza, superando limites impostos pelo espaço, pelo tempo e até mesmo pela biologia natural.
Levanto, neste momento, a seguinte indagação: quanto e, principalmente, como, o pensamento científico interfere nas nossas fantasias onipotentes?
Reportar-nos a Freud, no seu texto Totem e Tabu, de 1913, nos dá elementos interessantes para reflexão. Segundo ele, a raça humana desenvolveu ao longo dos milênios, três sistemas de pensamento, cada um deles, ao seu tempo e de forma específica, visando a compreender o Universo como um todo. Refere-se ele, portanto, a três grandes representações do Universo: animista, religiosa e científica. Propõe-se, então, a identificar as vicissitudes da onipotência do pensamento através destas fases. Assim, o que constata é que:
“ na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase religiosa, transferem-na para os deuses, reservando-se o poder de influenciar os deuses…de acordo com os seus desejos. A visão científica do Universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras imposições da Natureza. Não obstante, um pouco da crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade.”
O que teríamos a acrescentar, quase 90 anos após as palavras de Freud? O que podemos observar hoje, no que se refere à crença do homem atual no poder de sua mente?
Não me parece verdadeiro, nos dias de hoje, que a cultura predominante enfatize o reconhecimento da pequenez do ser humano. Ao contrário, como disse anteriormente, creio que neste século, num ritmo aceleradíssimo, os avanços da ciência e da tecnologia, em muitas áreas, expandiram as possibilidades de controle do Homem sobre os mais diversos aspectos da Natureza. Se a Freud, até meados deste século, pareceu que o amadurecimento da civilização humana encaminhava-se para uma aceitação dos limites impostos pela realidade, talvez, nos dias de hoje, ele reformulasse sua opinião. As conquistas atuais, ininterruptas, favorecem uma ilusão de onipotência. Não se trata, como na fase animista, de atribuir poder mágico ao pensamento. Trata-se, sim, de tamanho deslumbramento com as possibilidades alcançadas, que pouco empenho tem havido no sentido de colocarem-se limites éticos às realizações que vão se tornando possíveis. A onipotência anteriormente atribuída ao próprio pensamento, depois aos deuses, talvez tenha ficado adormecida por um certo período de consciência da condição humana. Hoje, porém, vejo tal fantasia intensamente revitalizada, e a onipotência, desta vez, atribuída à própria ciência e tecnologia.
Neste final de milênio a representação passa a ser de um Universo sem fronteiras, existência sem limites. Não se trata de criticar o progresso, mas de ressaltar a importância, bastante negligenciada, da participação concomitante de um pensamento filosófico.
Ainda em “Totem e tabu”, diz Freud:
“ Na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos.”
Estabelece um paralelo com o estágio do pensamento científico. Não há dúvida de que a compreensão científica do Universo depende de que se aceite que os fenômenos estão submetidos a leis impostas pela Natureza: princípio de realidade. No entanto, uma vez tendo adquirido conhecimento suficiente a respeito deste funcionamento, a ponto de adquirir muito controle sobre ele, parece-me que o objetivo do Homem atual passou a ser, ao invés de ajustar-se à realidade, como dizia Freud, o de ajustar a realidade aos seus desejos. Poderíamos dizer hoje sobre a tecnologia, o que Freud afirmou sobre a magia:
“……..tem de servir aos mais variados propósitos – ela deve submeter os fenômenos naturais à vontade do Homem…”
e eu acrescentaria, evitar a frustração.
A proposição “existência sem limites” , mobiliza em mim associações com as mais recentes realizações alcançadas pela biologia, principalmente no campo da reprodução animal. A clonagem. Onde inscrever, dentro de nós, tal realização? A que afeto conecta-se a constatação desta possibilidade? Frankenstein sempre foi classificado como conto de terror. A pretensão de dar vida a uma criatura sem concepção, era tida como manifestação de uma mente doentia. E agora? Tem ficado cada vez mais difícil discriminar onde está a linha divisória entre o sonho maluco, produto de uma total impossibilidade de lidar com os limites que frustram, e a persistência saudável em busca de um objetivo possível.
O sentimento que, no meu caso, desperta a possibilidade da clonagem, relaciona-se ao que descreve Freud no texto traduzido como “ o estranho” ou “o sinistro”. Na verdade o vocábulo original alemão “unheimlich” expressa exatamente a somatória de horror, espanto, perplexidade. E Freud diz:
“O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho, e há muito familiar.”
Ora, o que é mais velho e familiar à mente humana do que a fantasia onipotente? E o que pode ser mais expressivo de onipotência do que uma procriação que não exige nem sequer um par de células? E Freud também disse:
“muito daquilo que não é estranho em ficção, sê-lo-ia na vida real.”
Os limites da existência humana só poderão ser definidos por uma reflexão filosófica. Se isto não ocorrer paralelamente ao progresso científico e tecnológico, com certeza, é tempo de pânico.
BIBLIOGRAFIA
- Freud, S. (1913) – Obras Completas – Ed. Standard Brasileira, vol XIII: Totem e Tabu. IMAGO Ed., Rio de Janeiro,
- Freud, S. (1919) – Obras Completas – Ed. Standard Brasileira, vol XVII: O Estranho. IMAGO Ed.,
Rio de Janeiro, 1974.
- Gil, G . Parabolicamará – do CD Gilberto Gil – 99 Unplugged